Monday, November 16, 2009

À volta do mundo por terra e mar: Dias em Goa

Artigo retirado de http://www.supergoa.com/
À volta do mundo por terra e mar: Dias em Goa
18/4/2004 Gonçalo Cadilhe
in: Expresso, 27 de Março 2004

Entre as ruínas de Velha Goa e as «raves» dos jovens ocidentais, a língua portuguesa ainda é, para alguns, marca de identidade. Reportagem de Gonçalo Cadilhe para o EXPRESSO, na sua volta ao mundo.

É o mar Arábico, não sei porquê. Nos mapas parece-me tudo o mesmo oceano Índico. O quê, ou quem, divide os mares em outros mares? Serão correntes, temperaturas, ilhas, relevos submersos que colocam o Tirreno dentro do Mediterrâneo, o Cantábrico num canto do Atlântico, o mar da Tasmânia no fim do oceano Pacífico?

Este, o Arábico, talvez se chame assim por uma imprecação de Vasco da Gama ou Albuquerque, os heróis antigos deste pedaço de Índia onde em tempos o mar acabava e a terra recomeçava: «Primeiro, as águas agitadas do mar dos árabes; depois, as colinas ondulantes da Goa cristã». Outros tempos. Portugal aqui acabou, sem transição nem tentáculos no futuro, um insignificante momento político nesta terra de religião em que o ciclo cósmico substitui o sentido da História.

Sobrevivem algumas praças e fachadas, que poderiam ser as de um passeio nocturno pelos centros de Alcobaça ou Viseu, vestígios pitorescos submersos por prédios feios e degradados - que poderiam ser, também eles, de Alcobaça ou Viseu. Despontam alguns letreiros, nomes, topónimos que já ninguém sabe ler: Barbearia Godinho, Hotel Prainha, Bairro das Fontainhas. Os folhetos turísticos dedicam algumas linhas ao exotismo do legado português - a «siesta», a indolência mediterrânea, o cristianismo - e depois prosseguem para temas mais mundanos: as praias, os empreendimentos hoteleiros, as compras ou Velha Goa, a Roma do Oriente.

Visito essa aparição que é Velha Goa, a primeira cidade construída pelos meus antepassados, a capital dos anos da abundância fácil, da fé exacerbada. Dois séculos depois foi trocada por Panjim. Passeio pela capital despojada. Pouco lhe ficou: apenas as inúmeras igrejas, imensas, abandonadas. Já as tinha visto, do comboio, na luz delicada do final da tarde. A paisagem colorida, aquática, fértil, de uma serenidade bíblica, parecia acolher bem as torres e os crucifixos - um entrelaçado de religiosidade codificada e espiritualidade telúrica. Mas agora, sem a distância, sem a luminosidade, as igrejas aparecem como menires fossilizados, mudos, lineares, que se afundam numa maré enchente de cultos vigorosos e teologias vorazes. Velha Goa é a nossa Atlântida tropical.


PASSADO TURÍSTICO

«Os portugueses tinham criado em Goa uma espécie de vazio meso-americano, como os espanhóis no México», escreve Naipaul em India, a Million Mutinies Now. «Tinham criado na Índia algo não da Índia, uma simplificação, onde o passado indiano tinha sido abolido». Da mesma forma que os contemporâneos de Albuquerque cortaram relações com o que existiu antes deles, a Índia contemporânea relega o passado português ao episódio de folheto turístico. Portugal em Goa: um fluxo de tempo seccionado, um fantasma no subcontinente indiano.

Pergunto a Maité e Aires Dias o que sentem que são, se portugueses ou indianos. «Goeses», respondem. A resposta é comum nesta geração, a única à qual ainda se pode fazer a pergunta. Os outros já nasceram depois da anexação. Maité e Aires estavam, em 1961, na flor da idade. Um dia adormeceram portugueses, no dia seguinte acordaram indianos. «Nehru perdeu a paciência com a intransigência de Salazar», explicam-me. Goa era para o grande estadista - refiro-me a Nehru, claro - como «um fruto maduro, que há-de cair por si mesmo». Mas o fruto acabou por se colher à força.

Deleito-me com o português suave dos meus amigos, clássico sem ser arcaico, nenhum sotaque particular, nenhuma vulgaridade ou vício moderno, as mesmas formas de expressão que um Ricardo Reis poderia trocar com Marcenda. Será a língua portuguesa a pátria destes goeses? Se não, que outro significado atribuir ao gesto do senhor Miranda, da loja de fotocópias, uns dias atrás? Quando lhe disse a minha nacionalidade, extraiu um livro de uma gaveta e exibiu-o como uma bandeira: era o Memorial do Convento.

A língua como uma identidade, uma força superior às noções de território, raça ou destino comum. É uma ideia subversiva dentro do moderno conceito de nação. Mas no futuro deste planeta globalizado talvez um núcleo linguístico identifique mais que uma pátria.

Por exemplo Prashanth, um engenheiro de som que conheço no hotel. Durante os dias que passamos juntos, apresenta-se sempre como «washingtoniano». Tento perceber porquê. Prashanth nasceu na Índia, emigrou para a América aos oito anos, e agora, com 25, veio de férias à terra natal. Não há contradição nem pretensiosismo na sua identificação. Não se sente nem americano nem indiano, apenas alguém que cresceu numa comunidade hindu em Washington.

Acompanho Prashanth à praia de Anjuna, a duas horas de autocarro. Vai conhecer pessoalmente um amigo de um amigo, um americano: «Falámos várias vezes ao telefone, ajudei-o em algumas coisas, mas nunca nos encontrámos». Anjuna é um dos paraísos mundiais da droga e da contracultura, e apanha-me de surpresa. Assistimos a um concerto de instrumentos orientais, numa esplanada sobre o mar. A música é hipnótica, repetitiva, amodal, insinuante. A audiência está completamente drogada - «com pastilhas», explica Prashanth - e dança sem beleza nem pudor pelo estrado da esplanada, não pelo prazer liberatório do movimento corporal mas como resposta ao ritmo alienante. Sinto-me a testemunha involuntária de um ritual pagão, de um transe colectivo.

GOA GIL

O «GURU» PEDANTE Ao fim da tarde encontramos Goa Gil, o amigo do amigo do Prashanth. Goa Gil é um dos inventores da música «trance» - essa maldita não-música que infesta as discotecas do mundo inteiro. Dentro do «millieu», Goa Gil é uma pessoa importante, e considera-se como tal. O americano, vestido como um guru indiano, recebe-nos na sala de audiências do seu pequeno feudo. Meia dúzia de seguidores escutam boquiabertos o que tem para dizer. Oferece-nos um chá, mas recusa-se a falar com o jornalista português: «Só falo para a minha tribo», explica-nos. Trata Prashanth, o amigo do seu amigo, com suficiência e enfado. Decidimos retirar-nos ao fim de poucos minutos. Prashanth está furioso com a humilhação, eu com o tempo perdido.

Regressamos a Goa no último autocarro. Prashanth de repente exclama: «E se o chá tivesse droga?» Eu excluo a hipótese, depois olho pela janela: «Prashanth, na Índia há elefantes cor-de-rosa a planar pela floresta?» Responde: «Sim, há. Já vi uns quatro desde que tomei aquele chá». Rimos às gargalhadas, no velho autocarro que regressa a um fantasma do passado, onde o tempo é cósmico e a língua substitui a ideia de pátria.

Gonçalo Cadilhe

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